segunda-feira, 2 de julho de 2018

LAVADOR DE CORPOS

O LAVADOR DE CORPOS

Bill e Jean levantaram-se as dez horas da manhã. Depois do banho encaminharam-se à mesa, tomaram o pequeno almoço e dirigiram-se à governanta da casa. Pediram os valores deixado pelo pai para a refeição no Colégio.
- Marta cadê o dinheiro?
Sua ladra! Só isso?! Eu sei que o pai e a mãe deixaram mais do que isso. Onde está?!
- Eu já disse ao pai para despedir essa Marioneta faz tempo. O que eles não entendem é que tem coisas que depois de algum tempo precisam ser substituídas. Envelhecem! - Acrescentou Bill.
Marta olhou para eles sentida, suspirou, engoliu a seco mas lágrimas começaram a escorrer-lhe o rosto. Meneou a cabeça, deu-lhes as costas e foi para a cozinha, limpando as lágrimas com o seu lenço de bolso. Pelo rosto percebia-se ela sentia-se magoada, afinal criara aqueles rapazes desde meninos. E foi por eles que quase perdeu o marido. Ficava demasiadas noites fora de casa cuidando daqueles ingratos fedelhos. Estavam sendo tão duros com ela que cada palavra que lhes saía pela boca, feria-lhe o coração.
Na cozinha aos soluços e prantos Marta tentou defender-se.
- Meninos eu não...
- Cala boca! - Foi interrompida por Bill que seguiu-lhe até a entrada da cozinha, apontou-lhe o dedo no rosto e continuou.
- Nós vamos ligar ao pai para saber quanto deixou.

Em seguida dirigiram-se a saída da casa e cada um deles pegou numa das chaves de viaturas atrás da porta e saiu.
Não tinham autorização para conduzir, mas faziam-no. Já muitas vezes haviam sido presos por conduzir sem licença. Mas nunca sequer deixaram de lado as venturas das suas conduções de ilusões. Podiam muito bem usar um único carro, mas cada um gostava de derrapar e fazer rachas com os colegas que ostentavam o mesmo status.

Usufruiam dos bens dos pais a torta e a direita. Não tinham o minimo respeito por eles, nem mesmo pelos estranhos professores. Desde que nasceram nunca interessaram-se em saber do exercício que os pais faziam para conseguir tudo que tinham.
usavam irracionalmente os valores que recebiam dos pais para dar festas na escola e desencaminhar os colegas. Há quem diga que eles eram os anjos dos que num ou noutro dia não quisessem assistir as aulas, pois eram especialistas em colocar trapos no escape do gerador de corrente Electrica para colocar-lo a baixo. Já sabiam que era imperiosa assistir as aulas com ar ligado, caso contrário, os estudantes estavam autorizados a abandonar a sala.
- Pai, onde está o meu dinheiro para a festa que lhe falei? - Questionou Bill
- Filho, não tenho dinheiro.
- Não tens quê?! Pai a dois dias que lhe falo da festa e o pai vem me dizer que não tem dinheiro?!! Está bem. Vou pedir à mãe.
- Mas Bill sua mãe também não tem. Porquê você não aceita isso? Nem sempre os pais têm dinheiro? Vocês olham para nós como se fossemos rios de dinheiros. Mas deviam saber que até os rios atravessam fases difíceis como o baixo caudal. Há vezes que nós também nenhum tustão temos.
- A tá. Se o pai não tem. Onde é que vai tirar para dar à Marta quando ela for ao funeral dos pais dela ou sei lá quem?!
- Bill cala-tê!! Respeite Marta! Ela sempre cuidou de vocês como se fossem filhos dela. E perder um pai não é a mesma coisa que as merdas das festas onde pretendes ir! Não tê admito! E vá já para o quarto, sai-me imediatamente daqui!
- Bill saíu do escritório. Bateu a porta e foi-se embora.
Na manhã seguinte, encontraram nas mãos de Marta um bilhete.
- Meninos, o vosso pai deixou-vos este Bilhete e pediu que não fosse ignorado.
- Jean recebeu o bilhete. Foi até a cozinha para pegar a sobremesa. Abriu o papel e leu.
" Bom dia meninos, dou-vos o dinheiro para ir à festa. Mas quero que saiam comigo antes. E acho melhor que seja na Sexta-Feira"
- Jean transmitiu o recado ao irmão.
- Não vou! - Ripostou Bill
- Então não teremos dinheiro para ir à festa.
- Mas tu sabes Jean, sair com o pai é uma seca.
- Eu vou. Quero o dinheiro para festa.
- Está bem. Vamos então. Agora vá buscar a guita e vamos bazar.
- Jean pegou o dinheiro e saíu. Os dois foram para escola.
No final da tarde, já haviam voltado quando os pais chegaram. Estavam trancados no quarto duelando na play Station ouvindo rock ao alto volume. Foram chamados a mesa para o jantar. Comeram em silêncio e depois foram para cama.
As madrugadas sentiram a porta do quarto abrindo-se, a luz acender-se e uma voz ríspida despertando-lhes.
- Levantem-se! Tomem banho e vamos embora! - Bill puxou o lençol para melhor cobrir-se. Mas o pai continuou alí parados e persistente.
- Levantem Bill e Jean!!! - Levantaram-se resmungando.
- Pai, isso mesmo é hora de acordar os outro? Nós não tinhamos combinado assim.
- Não quero saber. Tomem o banho e vamos!
- Tomaram o banho e desceram. O pequeno almoço já estava pronto. Comeram às pressas, Subiram na viatura e rumaram para o centro da cidade.
Chegaram na Clínica as sete horas pontualmente. Entraram, atravessaram a sala de espera e em seguida pegaram um corredor. E no fundo do mesmo viram uma sala. Passaram por ela, viraram a esquerda e deram de frente com uma porta metálica onde o acesso requeria um passe. Do vidro da sala não se via nada. Parecia uma sala de terapias. Pintada a branco com apenas um quadro no meio da parede frontal à entrada.

José tateou a região do pescoço procurando pela fita que segurava o passe. Passou o cartão no indicador eletrónico e a porta abriu-se. Os rapazes olhavam-no pensativos e medonhos. José então deu a iniciativa Marcando passos para dentro em primeiro.
Bill e Jean estavam trémulos. Na sua mente somente rondava o pessimismo. Deve ser por terem consciência do que faziam.
- Entrem. - Convidou-lhes.
- Entre olharam-se e marcaram passos para dentro em silêncio e com rostos moribundos.
José seguiu até a parede onde estava o quadro. Via-se papéis afixados nele. A princípio os rapazes pensaram que fosse um quadro de honra onde podiam encontrar Notas das grandes realizações do pai na clínica. Até viram o nome do pai em uma das folhas, mas ficaram perplexos com o que se via em frente do nome.
" José Cadete. Morgue Três, gavetas 1,2,3. Três corpos para lavar. Os familiares dos dois primeiros recomendam o corte do cabelo com a taxa de acréscimo ao valor pago equivalente a trinta por cento do valor por lavagem de cada corpo.
Cumpra-se! "
Os rapazes em pé ao lado do pai, pestanejaram boquiabertas. Não acreditavam no que viam. Acharam que fosse um truque do pai. Não perguntaram nada. Riram-se por trás das costas dele.
- Ele pensa que nós não sabemos o que ele quer fazer. - Sussurrou Bill aos ouvidos de Jean.
Mas viram seu pai empolgado e alegre com o aumento descrito. , Olharam-se e quase num movimento combinado deram de ombro um para o outro e riram.

Tudo que sempre pensaram foi que o pai fosse cirurgião e que na verdade faria uma autópsia nos corpos e não lavagem.
José chamou-lhes, levou-os à sala dos lavadores de corpos e encontraram mais três homens nela. Acomodaram-se e José saíu as pressas ansioso para começar o trabalho.
Mudou a roupa, colocou a bata, meteu as botas, as luvas e uma máscara. Preparou também uma tesoura para cortar o cabelo dos recomendados.
Jean andou até ao pai e viu-lhe preparando sabonete, perfume e um balde. Depois pegou num pedaço de papel onde anotara os números das gavetas onde se encontravam os corpos.
Jean quase vomitou as tripas quando viu os miolos de um deles expostos. Parece ter sido vítima de acidente.
José não temia. Puxou a primeira e colocou na maca. Despejou-lhe água fria. Passou-lhe com rede e quando necessario esfregava-lhe o sabonete. Enquanto lavava, cantava uma música animada.
Parecia feliz com o trabalho que fazia. Bill não acreditou no que vira. Preferia acreditar que fosse Trute. A cada momento que via o pai esfregando o cadáver, sentia-se enjoado. As tripas tendiam a sair-lhe boca a fora. E em silêncio os seus olhos marejavam.
Os colegas na sala comentavam o facto de José ter tido sempre trabalho.
- Pombas! O José tem uma sorte do caraças. Ele sempre tem corpos.
- Yah! Ele faz isso com amor. É obediente e os doutores gostam dele por isso. Olha só para ele, está sempre bem disposto. Até parece conversar com cadáver. - E gargalhavam
Para Bill e Jean mesmo se fosse brincadeira tinha-se ido longe demais. Olharam-se novamente e incrédulos.
- É verdade isso?! - Perguntou Jean lacrimejando.
- Sim. - Respondeu Bill com um meneando a cabeça frente, trás. - Prefiro que não seja Jean.
As 12:00 todo trabalho estava feito.
José dirigiu-se aos filhos e convidou-lhes a almoçar.
- Terminei filhos. Vamos comer qualquer coisa e depois iremos para o meu outro emprego.
- Sem dizer nada, os dois passaram na frente do pai e foram direitinho para o carro.
- Hey! Rapazes, Temos de comer.
- Pai vamos então. Vamos comer aqui?! - Gritou Jean de costas para o pai.
Almoçaram na panela de barro. Mas os rapazes quase não comiam, brincavam com os talheres no prato. Olhavam um para o outro e olhavam para o pai comendo com muita vontade.
- Pai, quanto eles pagam? - Perguntou Bill com a voz meio para baixo.
- Cinco mil dolares por corpo. Se eu fizer trabalhos extras como cortes de cabelos e unhas. Aumenta o valor.
- Pai a quanto tempo faz isso? - perguntou Jean, limpando o rosto com as mãos.
- Xí... Filho não chores. Estamos num restaurante. Olha faço isso desde que a vossa mãe engravidou do Bill.
Eu não tinha emprego, nem profissão.
Mas um amigo falecido, ofereceu-me um jornal em troca de uma quantia que me devia. Foi lá que encontrei este emprego.
- Pai, já tens muito. Porquê não paras?!
- Não Bill. Já não faço por dinheiro. Faço-o simplesmente por ser uma rotina.
Os rapazes fizeram silêncio. José deu uma olhada rápida no relógio e disse.
- 12:40. Temos de ir embora.
saíu do restaurante, acelerou o carro até ao primeiro de Maio. Fizeram a rotunda e contornaram até à escola Nzinga Mbandi. Entraram na escola e quase todos estudantes os olhavam. Alguns rindo, outros com pena.
- Bill, olha só como olham para nós. Será que sabem do outro emprego do pai além deste de professor?
- Ah claro que não. Mas com certeza o pai deve ser daqueles professores, tipo o Alentejo né. - Sussurrou aos ouvidos do irmão. Equivocados mais uma vez pensavam que o pai fosse professor.
José cumprimentava com prazer cada estudante que encontrava no pátio. Uma menina que se achava mais prepotente da escola chegou por perto.
- Olha, o fachineiro tem filhos.
- José sorriu para ela e continuou andando.
Os dois se questionavam
" Fachineiro?! Não..." olharam para o pai, sua vestimenta, sua posição física, pensaram na casa, nos carros em casa, preferiam acreditar que haviam um mal entendido ou que nada daquilo fosse real. Continuaram a caminhar em silêncio. Entraram para a sala da Diretora da escola que recebeu-lhes bem, acomodou-lhes e até ofereceu-lhes um sumo.
- Não deixa estar. Estamos bem assim.
-Está bem. Se mudarem de ideia é só falarem.
José, hoje vais trabalhar nas duas alas. Seu companheiro não vem. Está com problemas de saúde. É melhor começares cedo para terminar cedo. Quero todas as casas de banho limpas!
Os rapazes não entenderam. Franziram as testas, pela forma como a senhora falara com o pai deles. Sentiram uma vontade de ir a cima dela. Mas pensaram nas vezes que mal falaram com Marta e engoliram a seco.
Sorrindo, José saíu por uns instantes e em seguida voltou sem o facto executivo que vestia. Colocara o uniforme de limpeza no corpo.
- Filhos fiquem a vontade. Vou terminar isso e volto já.
Bill meneou a cabeça duvidoso. Seguiu-o para constatar o que desconfiava.
Viu-o colocar a mascara, entrar na primeira casa de banho e começar a esfregar as sanitas cheias de fezes e com uma mistura de cheiros de urina e fezes. Por pouco vomitava. E na cabeça vinham-lhes as inúmeras vezes que falara sem modos com ele, as vezes que esbanjava a torta e direita o dinheiro. E também aquelas vezes que havia lhe faltado ao respeito por ter dito que o dinheiro devia ser gasto racionalmente.

Voltou-se para o irmão. Olhou-o nos olhos firmemente e sem dizer nada meneou a cabeça positivamente.
Jean começou a derramar lágrimas sem prantear.
Mas Bill voltou a espreitar e ver se não passava tudo de uma farsa. E viu o pai sorridente acenando adeus a eles. José dirigiu-se a próxima casa de banho e começou a lava-la. Um deles não aguentou e começou a chorar amargamente. Queriam desaparecer Dali. Sentiam vergonha de ser reconhecidos por algum dos familiares dos colegas ou amigos do colégio. Sempre tiveram a ilusão de que o pai fosse empresário, médico cirurgião e professor. Mas a realidade chocava-lhes. O modo como aquele homem conseguia pão para eles, era totalmente sacrificante que doia gastar as remunerações sem um fim racional.
As dezoito horas pontualmente José terminou o serviço. Tomou banho, colocou seu fato e perfumou-se.
- Prontos. Agora vamos ver um filme no shopping e depois... - Não! - interrompido.
- Não pai. Vamos para casa.
- Porquê?
- Pai, estamos cansados.
- Subiram no carro sem dizer nada. A viagem foi silenciosa. Cada um deles olhava para a paisagem da cidade.
Nalguns instantes, via-se Bill limpando as lágrimas com a ponta do casaco polo que vestia.
Chegaram em casa as vinte e um quarto. Marta havia posto a mesa, a mãe esperava por eles ansiosa para jantar. Mas os rapazes chegaram acabados. Desceram do carro e Jean correu para dentro, abraçou a mãe fortemente e sussurrou nos ouvidos dela.
- DESCULPA MÃE, NÓS NÃO SABIAMOS O QUE VOCÊS FAZIAM PARA NOS TRAZER DE COMER.
- A mãe ouvia tudo meneando a cabeça sem dizer nada e lacrimejando. Jean soltou-a e subiu as escadas da casa.
Bill por sua vez, andou até a sala quase no mesmo passo que o pai. Parou no meio dela e com lágrimas no rosto virou-se para o pai e disse.
- PERDOA-ME POR TER ABUSADO DOS SEUS GANHOS SEM SABER COMO OS CONSEGUIAS. Vou tomar um banho e depois vou estudar, não contem comigo ao jantar, em todo caso, Tia Marta traga-me por favor uma sopa de frutas. E obrigado pelas vezes que nos perdoaste quando tê ofendemos.

Fim#


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