quarta-feira, 25 de julho de 2018

A MADRUGADA DA NOSTALGIA


Os dias mais agradáveis de se viver são aqueles marcados por um
acontecimento diferente, ainda que esse acontecimento envergue a sublimidade como
o adereço de maior destaque. Hoje o dia começou-me mais cedo. Bem antes do tempo
de estar desperto.
Escuto o silêncio perambular entre as quatro paredes, buscando por quem o
prenda e faça dele seu.
Por entre os cortinados que cobrem a vista metropolitana… clarões em prisma.
Da cama para a janela a passos moderados, perfila-se a mesmice à vista.
Na madrugada involuntária que irrompe a minha rotina e leva-me o cérebro a
reconhecer o vazio no estômago, faz-se frenética a necessidade de encaminhar-me ao
passado com lacticínios sabores e chocolate. Um momento de tranquilidade sublime,
onde o pensamento alcança páginas viradas do livro de uma vida. Use-se a expressão:
“O útil foi unido ao agradável”.

A vida é a chance ideal para se escrever uma história, então, por que deixar um
registo útil para as gerações vindouras custa o preço do egoísmo?
Da berma da janela consigo avistar ruas vazias e silenciosas, cenário frio e
solitário, com dezenas de datas percorrendo o bairro que me viu nascer. Um bairro
que serviu de anfitrião à primeira corrida de estafetas, à primeira lata-latinha, que
esvoaçou aos olhos de todos a primeira carta de amor escrita a lápis e adornada com
auto-colantes, um bairro que persiste em esconder o lugar onde o meu primeiro beijo
foi dado e… claro, a primeira partida de futebol com a bola feita de trapo, onde a
sujidade, os ndondinhos, as lutas, gritarias e os abraços compunham o simbolismo de
um conjunto que jogou até à última gota de suor para satisfazer o ego e fazer os olhos
às meninas. Este bairro é sem sombra de dúvidas um anfitrião de emoções.
À medida em que me perco nos transcorridos pensamentos, apercebo-me pois
que, a melhor fase da minha vida acomodou-se no mar do longínquo, onde as ondas

seguem a direcção do astro rei, mas nunca beijam os pés que se encontram pousados
na areia das saudades.
Responsabilidades e outras tarefas dão as boas-vindas às rugas que sorriem à
minha idade minimamente longeva. Já não posso correr como estafeta, o testemunho
precisa ser dado aos miúdos que no bairro carinhosamente me tratam por Kota/Tio.
Mas não é só. Deles espero um testemunho de superação que me preencha as lacunas
que deixei à sorte, na altura em que tinha a sua idade. Só assim o ciclo se encerra. Há
que testemunhar os teus antecessores para que sejas testemunhado pelos teus
sucessores.
O ciclo da vida é uma dualidade inadiável, e por isso, inevitável. Os dois lados
da moeda não se conhecem o rosto, e cada ciclo não pode experimentar o tempo
alheio.
O dia no seu crepúsculo traz consigo um homem amanhecido, banhado em
águas de nostalgia, para um melhor reposicionamento intermitente nos próximos
desafios.
Não se trata de uma questão de aprendizado que nos mostra as dificuldades
diárias para se sobreviver, trata-se de uma questão de leviandade e de imacular as
lembranças de um tempo que em momentos de nostalgia trazem ao de cima a
possibilidade de se reorientar.
Somos todos chamados a responder pelos instintos da natureza humana,
somos todos chamados a declarar nossos interesses, sejam eles, subjectivos ou
objectivos, límpidos ou opacos.



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