Enquanto na Terra enfrentamos em conjunto um dos piores momentos da humanidade, e por mais difícil que seja concentrarmo-nos num mundo que não o nosso nesta altura, o resto do universo continua a sua ainda estranha e desconhecida existência.
A lua, por exemplo, tem sido notícia, pelos mais diversos motivos. No final do mês passado, cientistas mapearam pela primeira vez na história toda a superfície lunar, por exemplo. O trabalho dos investigadores do Astrogeology Science Center – USGS, em conjunto com a NASA e o Lunar Planetary Institute, chama-se Unified Geologic Map of the Moon e é um mapa digital que mostra a geologia da Lua em detalhe. O projecto vai ajudar no planeamento de futuras missões humanas à superfície lunar, e baseou-se naquilo que se conhece dos cerca de 4,5 mil milhões de anos de história do nosso astro vizinho, assumindo um valor inestimável para a comunidade científica e para o público em geral.
Noutras notícias, e quase em simultâneo, soube-se que a NASA seleccionou as empresas SpaceX de Elon Musk, a Blue Origin de Jeff Bezos e a Dynetics no concurso de consórcios que deverão desenvolver propostas para o desenho dos módulos usados na próxima missão lunar, em 2024. A NASA prevê atribuir aos três consórcios selecionados um total de 967 milhões de dólares (cerca de 884 milhões de euros) – se o Congresso, que reúne os representantes eleitos dos EUA, assim o aprovar. Desse valor, a Blue Origin ficou com mais de metade do “bolo” financeiro, ao garantir os 579 milhões de dólares relativos ao primeiro lugar. O consórcio liderado pela Dynetics deverá amealhar 253 milhões de dólares, enquanto o grupo de empresas coordenado pela SpaceX terá direito a 135 milhões de dólares. Nos próximos 10 meses, as três deverão desenvolver as respetivas propostas e projetos até à chamada fase de análise preliminar, que precede o desenvolvimento dos módulos lunares que vão ser usados na realidade.
A NASA tinha anunciado os seus planos de regresso à lua no ano passado, divulgando desde logo o objectivo de voltar a aterrar no satélite natural da Terra em 2024, 50 anos depois da primeira visita. As missões Artemis, como se chamarão, serão 3, e foram desenhadas para se irem aproximando progressivamente da superfície lunar – espera-se que na terceira missão, a que realmente aterra na Lua, esteja presente, pela primeira vez, uma astronauta feminina. A decisão de voltar à Lua estava tomada pela NASA há já alguns anos, uma viagem que funcionaria como um passo em frente na realização da primeira viagem tripulada a Marte. Mas foi a pressão do presidente Donald Trump – que vive com a cabeça na Lua desde a campanha presidencial em 2016 – que acabou por acelerar o processo, tendo pedido que tal acontecesse até 2024.
Nos últimos dias houve ainda espaço para outros fait divers espaciais, como o comunicado do Pentágono que divulga três vídeos da Marinha norte-americana que mostram objectos voadores não-identificados. Os vídeos remontam a 2007 e 2017 e já tinham sido amplamente divulgados, por imprensa e nas redes sociais, e até comentados por oficiais norte-americanos, mas foi a primeira vez que foram oficialmente partilhados para “esclarecer quaisquer equívocos do público sobre se as filmagens que têm estado a circular eram ou não reais, ou se há ou não mais vídeos”. Ou, a mais cor de rosa de todas as notícias, a de que a NASA está a planear um filme a bordo da Estação Espacial Internacional com o actor Tom Cruise, em colaboração com Elon Musk e a SpaceX.
Tudo isto para concluirmos que, em tempos de pandemia de Covid-19, se parece que não há mais notícias ou mundo além das nossas justificadas ansiedades e inquietações, não é verdade. Parece haver quem não se tenha esquecido do universo no geral, ou pior, quem talvez esteja a aproveitar este nosso momento de comunidade planetária para, no barulho das luzes, privatizar a Lua.
No mês passado, Donald Trump assinou uma ordem executiva na qual os Estados Unidos reconhecem formalmente os direitos dos interesses privados para reclamar recursos no espaço. A ordem executiva deixa claro que os EUA não vêem o espaço como um “bem comum global”, abrindo caminho para a mineração da Lua sem nenhum tipo de tratado internacional. “Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral”, lê-se no documento, que relembra ainda que os EUA nunca assinaram o acordo de 1979 conhecido como Tratado da Lua – um pacto que estipula que quaisquer atividades no espaço devem estar em conformidade com o direito internacional.
Agora, sabe-se que a administração Trump está a trabalhar nos contornos legais dessa proposta, para concretizar a legalidade dos tais trabalhos de mineração na Lua ao abrigo de um novo acordo “internacional patrocinado pelos EUA”, chamado Acordo de Artemis – o nome das missões lunares da NASA acima referidas.
O acordo seria o mais recente esforço da Casa Branca para cultivar aliados em torno do plano da NASA de colocar seres humanos e estações espaciais na Lua na próxima década, e ocorre numa altura em que a agência espacial norte-americana desempenha um papel cada vez mais influente na implementação das políticas externa de Trump.
De acordo com fontes da Reuters, citadas pelo The Guardian, o rascunho do pacto ainda não foi formalmente partilhado com qualquer aliado dos Estados Unidos. Apesar do aparente carácter diplomático do pacto, uma das suas principais características é a proposta de criação de “zonas de segurança” que cercariam futuras bases lunares para evitar danos ou interferência de “países rivais” ou empresas que operem nas proximidades. O pacto pretende ainda fornecer uma estrutura legal de acordo com o direito internacional para que as empresas possam possuir realmente os recursos que minerarem.
As autoridades norte-americanas prevêem negociar formalmente este acordo com parceiros espaciais como o Canadá, o Japão, os Emirados Árabes Unidos, e com os países europeus que o Governo de Trump considera terem interesses “idênticos” sobre a extração de recursos da superfície lunar.
A Rússia, principal parceira da NASA na Estação Espacial Internacional, não será uma das primeiras parceiras nestes acordos, disseram as fontes, uma vez que o Pentágono considera Moscovo como cada vez mais hostil por fazer manobras de satélite “ameaçadoras” em relação aos satélites norte-americanos em órbita da Terra.
Os contornos do novo acordo atropelam ainda o chamado Tratado do Espaço Exterior (Outer Space Treaty) de 1967, que subentendia a exploração e o uso do espaço ultraterrestre apenas em benefício e interesse de todos os países e em favor de toda a humanidade. O tratado, que foi assinado pelos EUA, afirma ainda que a Lua e restantes corpos celestes “não estão sujeitos à apropriação nacional por reivindicação de soberania, por meio de uso ou ocupação, ou por qualquer outro meio”, mas nada diz do comércio privado.
“Esta não é uma reivindicação territorial”, disse uma fonte anónima interveniente no projecto à Reuters, sobre as chamadas “zonas de segurança”. Essas áreas condicionadas, cujo tamanho varia de acordo com a operação, permitiriam a coordenação entre os actores espaciais sem reivindicar tecnicamente o território como soberano, disse. “A ideia é que, quem se aproximar de determinada operação e da zona de segurança declarada, entre em contacto com os responsáveis dessa operação com antecedência, os consulte e descubra como pode fazê-lo mantendo a segurança de todos”.
Este Acordo de Artemis faz parte do plano da administração Trump de evitar o processo de criação de um tratado das Nações Unidas e, em vez disso, chegar a um acordo com as nações “que pensam da mesma forma”, em parte porque a criação de um tratado oficial levaria muito tempo, e porque trabalhar com Estados sem presença espacial seria “improdutivo”, referiu uma fonte do Governo à Reuters. Trata-se ainda de um acordo emblemático para o crescente papel da NASA como uma ferramenta de diplomacia americana, que deve gerar polémica entre os rivais espaciais de Washington, como a China, além da já referida Rússia.
Esta insistência do Governo de Donald Trump em perfurar a Lua é consistente com o seu apoio entusiástico à também perfuração na Terra. Além disso, é um sublinhar do espaço extraterreno como um novo domínio militar, da Lua como activo estratégico, e do interesse do Presidente em afirmar o poder americano além das fronteiras terrestres, consistente também com a formação da Força Espacial integrada nas forças armadas dos EUA no ano passado, para conduzir guerras espaciais quando necessário. O mesmo Presidente que, aliás, escreveu em Junho de ano passado no Twitter que a NASA devia estar a concentrar-se “em Marte (de que a Lua faz parte)”. (A Lua não pertence a Marte.)
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