Casos como o do rapper, o de Woody Allen ou Harvey Weinstein lembram-nos que é imperativo analisar a arte produzida no contexto da vida do artista.
Na semana de 3 a 5 de Janeiro, cerca de dois milhões de americanos acompanharam Surviving R. Kelly, uma “docu-series” – termo para um documentário com mais de duas horas que acaba a ser dividido por partes quando exibido em televisão – produzida para a Lifetime, um canal de subscrição como a HBO, que documenta uma narrativa de décadas, explorando várias acusações feitas ao longo do tempo contra o rapper Robert (R.) Kelly. A alegações envolvem crimes como possessão e participação em situações de Pornografia Infantil, Abuso Sexual de Menores, Violência Doméstica e até Transmissão de STDs – Doenças Sexualmente Transmissíveis.
Como acontece cada vez que vêm à tona acusações contra nomes de poder em indústrias com influência na Pop Culture americana, como Chris Brown, Harvey Weinstein, Louis CK e alguns mais antigos como Woody Allen ou Roman Polanski, que serão abordados mais tarde, o caso de R. Kelly voltou a lembrar-nos da discussão sobre como se separa a obra do artista.
A resposta é complexa e não deve ser dada de ânimo leve, sem uma consideração mais profunda do tema. Até porque a resposta é diferente consoante a situação. Consigo ver Guardians of The Galaxysem pensar em James Gunn, divertiria-me a ver Kevin Hart a apresentar a cerimónia dos Óscares este ano. No entanto, não consigo ver Manhattan, filme de Allen, da mesma maneira que a primeira vez, e não consigo cantar “I Believe I Can Fly” com o mesmo entusiasmo, sabendo que vem de uma pessoa que, permitam-me a expressão, é uma verdadeira besta, que queria apenas disfarçar as suas verdadeiras intenções.
Manhattan, um filme de 1979, conta a história de um homem de 42 anos que está numa relação com uma rapariga de 17 anos, e que mais tarde se apaixona ainda pela amante do seu melhor amigo. Com uma banda sonora maravilhosa, uma perspetiva de Nova Iorque aliciante e um diálogo charmoso, não é difícil gostar de Manhattan. No entanto, 40 anos depois, as coisas não assim tão simples. É imperativo analisar a arte produzida no contexto da vida do artista.
O CASO WOODY ALLEN
O CASO WOODY ALLEN
Em Dezembro de 2018, Christina Engelhardt falou publicamente sobre a sua relação de oito anos com Allen, que começou em 1976, quando ela tinha apenas 16 anos e ele 41. Como óbvio, foi esta a relação que inspirou o filme em primeiro lugar. Engelhardt não acusa Allen de nada, mas a relação em si já é um problema. “O amor não tem idade” é tema para outro dia. A realidade é que perante a lei, a idade de consentimento é os 17 anos, idade que Allen utilizou no filme para disfarçar o problema. A própria mulher que inspirou o filme diz-se chocada pelas semelhanças entre o filme e aquilo que aconteceu na vida real. Mas na realidade, a gravidade das acções de Allen nem está em Manhattanou nesta situação.
A Agosto de 1992, Allen foi acusado de abuso sexual pela sua filha adoptiva, Dylan Farrow, numa altura em que este se encontrava casado com a atriz Mia Farrow. Como se a situação não pudesse ganhar contornos mais bizarros, em 1991, Allen assumiu uma relação com uma das filhas adoptivas de Farrow, Soon-Yi Previn, quando esta se encontrava ainda no último ano do secundário, mas já com 21 anos. Allen tinha 56 anos.
O caso de Allen vs Farrow foi a tribunal e o realizador e actor acabou por sair ileso. No entanto, o juiz acabou por concluir que o comportamento de Allen com Dylan Farrow tinha sido “nojento e inapropriado”, e que medidas deviam ser tomadas para a proteção de Farrow. Por consequência deste julgamento e das evidencias reunidas, Allen perdeu a batalha de custódia contra Mia Farrow, acusando-a de manipular e treinar [Dylan] Farrow em relação às alegações. Com muitas contradições, que podem ler aqui, este não é aquele típico caso em que as pessoas decidem acreditar e defender Allen, dado que este foi dado como inocente.
O CASO R. KELLY
Foi uma semelhante concepção de inocência que levou várias famílias a perderem as suas filhas, após as terem encorajado a interagir com Kelly, depois de este ter sido absolvido de todas as acusações, em 2008.
Como explorado na segunda parte do documentário, após iniciado o contacto com estas raparigas, Kelly começava a sair com elas cada vez mais vezes, até que as levava para sua mansão, fechando-as num quarto, cortando desde aí todo o contacto com a família e o resto do mundo. Diz-se tinha várias raparigas em sua casa ao mesmo tempo, fechadas numa espécie de culto.
Para além disso, foi confirmado que em 1994, Kelly se casou brevemente com a cantora Aaliyah, na altura com 15 anos e ele com 27. Para estes poderem casar, tiveram de mentir, alegando que Aaliyah tinha 18 anos.
Dame Dash, namorado de Aaliyah até ao seu falecimento em 2001, falou publicamente após ter visto partes do documentário, admitindo que Aaliyah nunca foi capaz de falar abertamente com ele sobre a sua relação com Kelly, acusando-o apenas de ser um mau homem. O ressentimento de Dash por Kelly agravou-se ainda mais quando o seu “partner in crime” Jay-Z decidiu fazer um álbum com Kelly, ignorando o seu historial.
É aqui que a principal diferenciação deve ser delineada: Como separar a Arte do Artista quando esta se encontra intrinsecamente ligada à sua vida pessoal, principalmente no que envolve a destruição e violação da integridade física de outro indivíduo?
Um artista é conhecido pela sua excelência precisamente por ter dado parte de si ao seu trabalho. Principalmente na música, onde o trabalho expressa o que vai na alma do seu criador. O exemplo perfeito de tal efeito é Rumours, álbum de Fleetwood Mac, fruto do drama que ocorria entre os próprios membros da banda. Lindsey Buckingham e Stevie Nicks estavam constantemente a discutir, Christine McVie e John McVie estavam prestes a divorciar-se e mal se falavam e também Mick Fleetwood se viria a divorciar. Décadas depois, Rumours mantém-se como o décimo álbum mais vendido de sempre.
Outro exemplo do ponto que estou a tentar estabelecer: à primeira vista, “Imagine” de John Lennon é o derradeiro “hino mundial”, um genuíno apelo pela paz, lançado num ambiente fragilizado, durante a Guerra do Vietname. O que eu não tenho a certeza que muito gente saiba é que na sua vida pessoal, John Lennon era precisamente o contrário. Antes da era da “Beatlemania”, quase espancou um DJ até à morte, após este ter feito um comentário a questionar a sua sexualidade. Em 1979, admitiu num cassete de áudio ter-se sentido atraído pela sua própria mãe, admitindo ter-lhe tocando no peito e arrependendo-se de não ter continuado os avanços. Após o lançamento da música “Getting Better”, onde se lia “I used to be cruel to my woman, I beat her and kept apart from the things that she loved “, Lennon admitiu em entrevista à Playboy Magazine que a letra era autobiográfica, sendo uma dessas mulheres agredidas a sua primeira mulher, Cynthia Powell, para além de nunca ter tratado o seu primeiro filho Julian da melhor maneira, enquanto este crescia. O seu segundo casamento com Yoko Ono também não foi nenhum mar de rosas. Ono era constantemente acusada de ser controladora e obsessiva, de ser uma parte fulcral na separação dos Beatles, quando na verdade era Lennon quem a forçava a acompanha-lo para todo o lado. Para além disso, consta que traiu ambas as suas mulheres, várias vezes.
Até hoje, Ono defende “Imagine” como uma simples representação daquilo em que Lennon acreditava, sem considerar se seria um sucesso ou não. Pessoalmente, fica difícil valorizar esta canção quando se sabe o que vem por trás. Lennon tornou-se o “poster boy” do apelo à paz do Séc. XX sem ter verdadeira moral para tal, pois a maneira como viveu a sua vida não é exemplo para ninguém.
Tudo isto leva-nos também ao double standard que se propaga nestas indústrias, em que uns são levados à justiça e outros são coroados campeões. Apesar do Spotify ter retirado Kelly de todas as suas playlists, as streams do cantor não sofreram grandes alterações. Na realidade, durante o período de dias em que o documentário foi exibido, a quantidade de streams da música de Kelly aumentou em 16%.
E com esta questão, acrescenta-se ainda outro ponto: a incoerência e hipocrisia de muitas figuras que trabalham com estes nomes de forma consciente e ainda assim se associam a causas como a Me Too ou a Time’s Up. Pego nos dois exemplos mais vivos na minha memória: Chance The Rapper, que admite no documentário ter cometido um erro ao fazer uma música com Kelly, aderindo à “cultura” de ignorar a dor e sofrimento daquelas raparigas negras; outro exemplo é o de Kate Winslet, actriz de renome e de poder, que escolhe deliberadamente trabalhar com Allen e Polanski, consciente das alegações feitas contra estes, tendo o último sido condenado com ditos crimes. (Digo isto com esta certeza em relação ao estatuto de Winslet na altura em que trabalhou com os realizadores pois ambos os filmes foram feitos esta década.)
Neste caso, é mais fácil deixar a situação para trás. No entanto, não deixo de perder uma porção significativa do respeito que tinha pela pessoa em causa. No caso de Winslet, por exemplo, dado o historial, a escolha mais sensata seria não ter uma participação tão activa num movimento como o Time’s Up, pois as suas escolhas passadas só tiram força a um movimento com potencial, que acabou por ser meio esquecido um ano depois. Outra incriminada de tal incoerência foi Asia Sargento, que após ter sido uma das primeiras mulheres a acusar Weinstein, também ela acabou a ser acusada de abuso sexual pelo actor Jimmy Bennet.
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