Sandra Bernardo | Novo Jornal
Em breve, a associação vai tornar públicos os resultados da campanha "Sem Registo, não existo", que colocou em marcha com o objectivo de identificar pessoas sem assento de nascimento e sem Bilhete de Identidade.
O NJOnline, que acompanhou os voluntários da campanha "Sem registo, não existo" e verificou, no terreno, que este é um problema que não escolhe sexo nem idade, conta, entre outras, a história de um antigo soldado-criança e a de um pequeno jogador da equipa de hóquei patins do Petro de Luanda, que nunca saiu de Luanda para representar as cores do clube por não poder viajar.
No terreno tornou-se evidente que os motivos para a falta de registo da maior parte da população não variam muito: pais que não assumem a paternidade dos filhos, outros que se desresponsabilizam da tarefa de ser pai, desleixo, ignorância e desconhecimento de direitos e deveres, extorsão, engano de uns quantos miseráveis sobre outros tão ou mais miseráveis, a tão falada corrupção que tudo corrói, sobretudo a vida dos mais desvalidos, vergonha, pobreza, miséria. Resultados vários de uma guerra que continua a fazer vítimas entre os mais frágeis, os desvalidos que ninguém quer ver e de que poucos parecem querer saber. Uma guerra que resvalou das trincheiras, depois se fez selva de dólares desbaratados, deixando um rasto de profunda desumanidade.
O artigo 32 da Constituição da República de Angola, tal como o artigo 6 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece que todas as pessoas têm direito a uma personalidade jurídica, o que não acontece com quase metade da população angolana.
O problema já não é novo nem desconhecido, mas isso pouco tem ajudado quem não tem registo e, por isso, "não existe" enquanto cidadão.
O registo civil consta também dos 11 Compromissos com a Criança e da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que Angola ratificou, mas tal não impede que haja quase quatro milhões de crianças, até aos 5 anos, por registar, e a quem é negada, logo à partida, a igualdade de oportunidades.
É com esse problema em mente que esta equipa da HANDEKA, que vive da boa vontade de voluntários, tem palmilhado os bairros da província de Luanda, fazendo o levantamento e dando visibilidade a um problema que afecta cerca de 11 milhões de angolanos que todos os dias tentam sobreviver sem documentação.
Bairro "5Fios", Kilamba
O dia é passado no Bairro do "5 Fios", localizado no município de Belas, a cerca de 30 quilómetros a sul do centro da cidade de Luanda.
É um bairro muito pobre, com casas de chapa, erguidas pelos próprios moradores sobre a terra vermelha. Ainda não caíram as primeiras chuvas, que darão lugar à lama e à - ainda maior - devastação.
Ao lado, nasceu a centralidade do Kilamba, com os seus prédios de apartamentos novos, muitos ainda por habitar e já a degradar-se, as buganvílias a crescer desleixadas, insinuando a aparência de abandono que não tardará a tomar conta de uma parte da "cidade nova", inaugurada em Julho de 2011 pelo então Presidente da República, José Eduardo dos Santos.
Bairro e musseque estão separados por uma rua e um muro em chapa que alguém já começou a derrubar.
O NJOnline acompanha Hitler Samussuku, Bruno Calipa e Arantes Kivuvu, três jovens voluntários da Handeka. À chegada à construção de tijolo onde funciona o Comité de Acção do Partido (CAP) do MPLA, somos recebidos pelo segundo secretário. Também ele, informam os activistas, não tem registo de nascimento.
Chama-se Figueiredo Lopes Canzau e nasceu no Uíge há 35 anos. Ingressou na Juventude do Movimento Popular da Libertação de Angola em 2016, mas já "era do partido há muito tempo", diz, enquanto mostra o cartão com orgulho.
Figueiredo Cauzau foi uma criança-soldado, nos idos de 1990, durante a guerra civil. Fez-se homem durante o conflito, enquadrado nas Forças Armadas Angolanas, como técnico de reparação dos aparelhos electrónicos, no Uíge.
"Rádios, manivelas, porque dentro do meu bairro havia muitos senhores que me ensinaram, e o meu pai também foi um bom rádio-técnico e explicava-me tudo", conta.
"Os cubanos não me deixavam pegar em armas e protegeram-me. Como eu era bom a arranjar aparelhos, foi isso que fiz", acrescenta.
"Depois as FAA levaram-me para o Kuando Kubango, me incumbiram como especialista das comunicações, e depois voltei ao Uíge, no 5º agrupamento. Fui atingido no braço direito, vim para Luanda, com um bilhete provisório de campanha, trabalhei na estiva do Porto de Luanda, depois como técnico de frio nos navios. A minha cabeça guarda. Em quatro dias, cinco dias quando eu praticar dá certo", diz.
Mas o contrato acabou, e para renová-lo Figueiredo Cauzau precisava de registo. Acabou enganado por alguém que se apresentou como funcionário da conservatória de Viana, que, em troca de 15 mil kwanzas, se ofereceu para tratar de tudo.
"Fui tentar com um senhor, pediu-me 15 mil kwanzas, entreguei esse valor, esperei um mês, depois outro, depois outro, contactei o tal senhor, sempre me abandalhava, desisti. E com o meu dinheiro ajudo as minhas irmãs, sou o único rapaz, elas são seis meninas", explica.
Os únicos documentos que tem são o cartão de eleitor e o cartão de militante do MPLA.
Tem testemunhas em como pertenceu às Forças Armadas Angolanas, nomeadamente o homem que foi o seu comandante, mas isso não chega para receber qualquer apoio das FAA.
"Os valores que eu consegui enquanto fui trabalhador no porto de Luanda, apliquei-os na compra de três compressores de recauchutagem, que estão com uns homens que trabalham para mim, quando eu estou fraco, vou ter com eles e trago algum dinheiro".
Para já, Figueiredo Cauzau desistiu da ideia de ter Bilhete de Identidade. Tem 13 sobrinhos menores que não são registados "por desleixo, porque os pais estão registados".
A curiosidade faz com que se juntem vários moradores no CAP do MPLA do bairro "5 Fios". Nenhum tem assento de nascimento.
Alegria Domingues tem 26 anos, está em Luanda há seis, vinda do Uíge. Nunca teve nenhum documento a não ser o cartão de eleitor. É vendedora, com a mãe, que não sabe a idade, e que a acompanha na venda de pão no bairro. Nunca saíram dos limites do bairro.
José Jamba nasceu no Huambo, tem 16 anos e veio para Luanda com os pais e os irmãos. Entretanto, a mãe morreu. Depois, o pai desalojou-os e vendeu o terreno. O pai de José Jamba nunca assumiu a paternidade.
O tio de José Jamba tem 24 anos. Os pais "estão cansados" e "não têm condições para tratar disso, têm cabelos brancos". Recebeu agora um formulário da Comissão de Moradores para preencher e voltar a entregar. Não sabe ler nem escrever.
Comissão de Moradores do bairro
Dirigimo-nos à Comissão de Moradores. Somos recebidos com cordialidade e todos se mostram disponíveis para falar. Sebastião Makuzulo, coordenador da Comissão de Moradores, explica que estão a fazer o registo civil dos moradores do bairro, depois de terem recebido uma orientação superior do distrito do Kilamba para dar entrada dos processos na conservatória. Diz que é o primeiro registo feito no "5 fios" e mostra-nos as pilhas de processos já preenchidos.
"Os que não têm nenhum documento nós temos de fazer o registo", explica.
E as pessoas que não sabem escrever, perguntamos?
"Houve uma enchente de gente que não é do bairro e nós só registávamos os que sabiam preencher, mas agora já recebemos ordens para preencher os formulários das pessoas que não sabem escrever, mas foi só no dia 15 é que recebemos essas orientações", conta.
No fim, os processos darão entrada na conservatória do Kilamba, que entrará em contacto com cada um dos moradores, a quem foi pedido o contacto telefónico no formulário, informa Sebastião Makuzulo.
"Nós já fizemos o registo de mais de 3.000 moradores", declara, mostrando os formulários que contêm todos os dados necessários para a emissão do Bilhete de Identidade.
"Numa outra folha é registado o nosso trabalho, com os processos numerados", diz.
"Todo o bairro tem conhecimento de que estamos a fazer este registo, as orientações são para fazer o registo de toda a gente", explica um dos vários funcionários encarregados de verificar os processos".
De regresso à capital
A 500 metros da marginal de Luanda, postal turístico da capital, fica o bairro Texas, de ruas estreitas e becos escuros. O amontoado de tijolos e chapa não chega para chamar casa ao espaço onde vive Décio, um jovem atleta de 12 anos, que joga hóquei em patins no Petro de Luanda.
Para chegar à barraca onde mora, passa-se por uma viela onde não cabe mais do que uma pessoa à passagem, um fio de água imunda invade as narinas antes de Hitler Samussuku avisar que é melhor suster a respiração. Onde a sarjeta termina, há um fogareiro aceso com carne a grelhar. Ao fundo, uma criança nua. Ainda no horizonte, em absoluto contraste, um dos muitos arranha-céus ofusca o olhar com o brilho dos espelhos com que foi forrado. Pequim em Luanda, Nova York em Luanda.
No bairro Texas ninguém conhece a capital da China ou a dos Estados Unidos da América (EUA). Nem sabes que o bairro tem o nome de um dos um dos 50 estados dos EUA. Ali, ao pé da marginal, o conjunto de barracas é tudo o que existe para quem nunca sentiu os confortos de uma habitação condigna. No entanto, "a casa", como lhe chama Flora Madalena, a mãe de Décio, pertence à família, e isso, como ela explica "é uma bênção". Sem a casa, surgiria mais uma despesa impossível para quem está desempregada com vários filhos a cargo, de mais do que um pai ausente.
Décio, o menino tímido de 12 anos, ocupa no Petro de Luanda a posição de ponta de lança. Quer ser profissional de hóquei em patins, mas, para já, quer apenas ser menino e acompanhar a sua equipa sempre que esta vai jogar fora. E quer estudar. Para isso, precisa que a cédula seja transformada em Bilhete de Identidade, e, para isso, é necessário que o pai assuma as suas responsabilidades e queira registá-lo. A mãe de Décio, que antes dos 40 anos já é avó, também não tem registo de nascimento, tal como a mãe dela nunca teve. Flora nunca antes tentou fazer o seu próprio registo, não possuindo qualquer documento. Mas agora, diz, está "a tratar disso, com o coordenador do bairro".
Décio anda na terceira classe, na escola 8. Gosta de estudar, conta. Diz, com um fio de voz, que os colegas já foram representar o clube a outras províncias, mas ele, como não não tem bilhete de identidade, não pôde acompanhá-los. E na escola também já lhe perguntaram pelo documento.
A mãe vem em socorro de Décio e explica que apenas existe uma cédula de nascimento, e, apesar de já terem chamado o pai para se dirigir com ele à conservatória, a fim de requerer o bilhete de identidade, o pai, que vive no bairro do Golf 1, não apareceu.
"Como eu não tenho documentos, não posso fazer o registo. E como o pai não assina...O pai fez outra família e não vem registar estas crianças", conta Flora.
A filha mais velha de Flora, Sara Madalena Paulo, de 26 anos, filha de outro companheiro da mãe, junta-se à conversa. Tem bilhete de identidade e registou como sua filha a irmã mais nova.
Dá muita importância ao documento e explica porquê: "Se tu vais a um hospital, estás gravemente doente, não consegues falar, o teu documento consegue identificar-te. E também, sem registo, precisas de um trabalho e não consegues, onde tu vais trabalhar requer pagamento no banco, como fazes? O registo é muito importante na vida do ser humano".
Sara tem uma filha, de dez meses, que já veio registada da maternidade, acabando, desta forma, com o ciclo.
"Quando era criança e vivia com a minha mãe trataram-me de uma cédula, mas era falsa. Quatro anos depois de estar na escola, deram conta e não me deixaram estudar mais. Cresci sem documentos. Entretanto, na Ilha apareceu-me um trabalho, mas os donos exigiam que eu tivesse bilhete. Fiquei lá a trabalhar mas deram-me um prazo", explica.
"Fui à Samba, à conservatória, levei o bilhete de identidade do meu pai, fiz o documento, mas não consta o nome da minha mãe porque ela não tem registo", conta.
Sara explica que, para que os irmãos não passassem por aquilo que ela passou, tentou registá-los a todos como seus filhos, mas na conservatória apenas permitiram que registasse a irmã mais nova, por ser a única que poderia ser filha dela, devido à diferença de idades.
"Depois de eu tratar do meu BI, na escola da minha irmã estavam a exigir o documento, registei-a como minha filha e do meu marido. Como ainda dava (a menina tinha oito anos), foi possível. O meu irmão não deu, porque a diferença de idades não o permitia.
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