sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A mãe que levou as filhas ao "Estado Islâmico"



Para grupos de direitos humanos, julgamentos de estrangeiros no Iraque acontecem de forma acelerada

DW refaz os passos de alemã condenada à prisão perpétua em Badgá por suas ligações com o grupo jihadista. Ela foi para a Síria com suas duas filhas com o objetivo de se unir aos terroristas.
Em 2014, Lamia K. fez as malas e se mudou para a Síria, com as duas filhas adolescentes, para se unir ao "Estado Islâmico" (EI), que naquele momento assolava o Iraque e a Síria.
Lamia, na época uma mulher divorciada de 50 e poucos anos, manteve seus planos de partida somente para si, relataram à DW antigos amigos e conhecidos.
Ela crescera numa família de classe média em Rabat, capital do Marrocos, e se mudou para Trier, no oeste da Alemanha, em meados da década de 1990, com uma bolsa de estudos para cursar pós-graduação em letras-alemão. Em Trier, ela conheceu um homem, que se converteu ao islã para se casar com ela e com quem teve três filhos: um garoto e duas meninas.
Uma amiga em Trier, integrante de um pequeno grupo de mulheres marroquinas que se encontram regularmente, descreveu Lamia como uma pessoa de personalidade forte. Naquela época, Lamia frequentava a mesquita por ocasião de importantes festas religiosas, mas parou de usar o véu islâmico depois de se estabelecer na Alemanha.
As pessoas entrevistadas pela DW concordaram que Lamia, que possui dupla cidadania (alemã e marroquina), era uma pessoa liberal, "normal". "Ela não era conservadora ou radical", lembrou sua amiga.
  • "Eu não entendo"
A família mudou-se para a cidade de Mainz, também no oeste da Alemanha e onde o marido de Lamia trabalhava. E, então, Lamia mudou radicalmente. "Eu não entendo o que aconteceu", disse um amigo à DW.
Lamia e seu marido se divorciaram quando os filhos ainda eram pequenos. Ela então os levou por alguns meses para o Marrocos e depois voltou para a Alemanha, estabelecendo-se na cidade de Mannheim.
Não se sabe por que ela se mudou para Mannheim, que, segundo autoridades de segurança, não é de modo algum um foco de radicais. Na cidade, Lamia manteve uma vida reservada, disse uma mulher que se lembra de tê-la visto com suas filhas na vizinhança, e passou a usar um véu islâmico e uma longa saia preta.
"Ela nunca teria se socializado com pessoas como eu", disse a mulher, que também é descendente de marroquinos, e que usa saias curtas e nenhum lenço na cabeça. "Ela deve ter sido terrivelmente solitária", acrescentou.
Aparentemente, Lamia foi atraída pelos radicais que monitoram fóruns e salas de bate-papo online na esperança de atrair recrutas para o EI, grupo terrorista islâmico que, em meados de 2014, havia proclamado o seu "califado".
Quando Lamia levou suas filhas para se unir ao grupo radical terrorista, ela não levou seu filho consigo. "Fiquei absolutamente chocado ao saber o que ela fez", disse um amigo.
  • Radicalização tardia
O incomum no caso de Lamia é que ela se radicalizou numa idade mais avançada. Muitos dos cerca de mil alemães que partiram para ingressar nas fileiras do EI a partir de 2013 eram mais novos e geralmente estavam no fim da adolescência ou tinham 20 e poucos anos.
As autoridades alemãs estimam que por volta de um terço das pessoas que deixaram o país para se unir a grupos extremistas na Síria e no Iraque retornaram, incluindo cerca de 50 mulheres.
De acordo com o Ministério do Interior, cerca de 270 mulheres alemãs e seus filhos ainda estão na zona de guerra na Síria e no Iraque e mais de dez estão detidas por autoridades locais, com seus filhos em acampamentos e prisões.
Entre elas estão Lamia, sua filha mais velha, Nadia, e a filha pequena de Nadia, que nasceu de um combatente do EI, com quem ela se casou na Síria. A filha mais nova de Lamia sofria de graves deficiências mentais e físicas, tendo sido, supostamente, morta no Iraque.
Forças iraquianas prenderam Lamia e Nadia com um grupo de outras mulheres e seus filhos em 2017 em Mossul, a capital de fato do EI no Iraque, depois de libertar a cidade do controle do grupo, numa luta prolongada e sangrenta. Depois disso, as mulheres e as crianças foram transferidas para uma prisão em Bagdá.
 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico"
Perto da cidade de Mossul, no Iraque, a combatente curda Haseba Nauzad examina de binóculo a linha de front que separa o território curdo daquele controlado pela organização terrorista "Estado Islâmico" (EI). Em cooperação com o Exército iraquiano, os curdos ganham cada vez mais terreno contra os jihadistas.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Vanguarda da resistência

Inimigo localizado, é hora de atirar. Juntamente com a camarada yazidi Asema Dahir (3ª da dir.) e outras combatentes, Haseba mira os terroristas do EI. Como as ofensivas aéreas não bastam para derrotar os jihadistas, as yazidis e curdas formam a linha de frente no combate de solo.
 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Visão desimpedida

Haseba Nauzad prende os cabelos num rabo de cavalo: para mirar com exatidão, nada pode atrapalhar a visão. Para os ocidentais pouco mais do que um capricho da moda, o "military look" reflete uma sofrida realidade tanto aqui no Iraque como na Síria.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Companheiro fiel e símbolo de outros tempos

Asema Dahir faz uma pausa no combate. O ursinho de pelúcia vermelho que leva no braço é um símbolo de uma passado pacífico, encerrado abruptamente em meados 2014 com o ataque do EI. Para muitas mulheres yazidis começou aí uma época de sofrimento e de ruptura com tudo o que lhes era mais caro.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Imagem eloquente

O "Estado Islâmico" não teve piedade nem com os mais fracos. Implacavelmente perseguidos pelos fundamentalistas, em meados de 2014 centenas de milhares tiveram que procurar abrigo. Na época, esta foto de um ancião e suas acompanhantes deu a volta ao mundo como símbolo do sofrimento dos yazidis.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Trauma de uma adolescente

Esta jovem yazidi não quis mostrar o rosto. Logo após a chegada do EI, ela foi forçada a se casar, aos 15 anos, com um militante do grupo. Dois meses mais tarde conseguiu escapar e agora vive novamente com a família. E relata horrores quase indizíveis.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Depois da batalha

Meses a fio, os jihadistas do EI também sitiaram a cidade de Kobane, no norte da Síria, bem na fronteira com a Turquia. Lá os curdos ofereceram resistência desesperada, até conseguir vencer os terroristas com a ajuda da Força Aérea americana. Para trás ficou um mar de ruínas.

 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" União que faz a força

O EI ataca a todos que não compartilhem sua ideologia. Ele aposta numa tática divisiva, tentando instigar as diferentes confissões religiosas e etnias umas contra as outras. Nem sempre funciona: há muito, curdas e yazidis tornaram-se aliadas – o que já representa uma vitória simbólica contra os jihadistas.
 A guerra particular das mulheres contra o "Estado Islâmico" Não à escravidão
Do ponto de vista militar, o "Estado Islâmico" ainda não está vencido, continuando a deter o controle sobre vastas regiões na Síria e no Iraque. As curdas e yazidis seguirão combatendo-o, e de quebra dão uma lição aos fundamentalistas: as mulheres não nasceram para ser escravas.
Autoria: Kersten Knipp (av)
  • Prisão perpétua
As autoridades iraquianas estão julgando as mulheres que viviam com o EI, assim como os combatentes estrangeiros que se uniram ao grupo.
Inicialmente Lamia havia sido condenada à morte em janeiro por um tribunal especial em Bagdá, por fornecer "apoio logístico e ajudar o grupo terrorista a realizar crimes". A sentença foi comutada para prisão perpétua.
No início deste mês, Nadia foi condenada à prisão perpétua por pertencer à milícia terrorista. Segundo relatos de agência de notícias, ela afirmou não acreditar na ideologia do EI. No entanto, admitira anteriormente que recebia um salário mensal do grupo radical islâmico.
O advogado de Nadia enfatizou que, na época, ela era menor de idade e que seu casamento com um membro do EI na Síria não foi "uma decisão tomada por um adulto em plena consciência".
Os julgamentos de combatentes estrangeiros e suas esposas transcorrem frequentemente de forma acelerada, de acordo com grupos de direitos humanos. E a tortura é generalizada. Os juízes fazem pouco esforço para obter provas de que crimes reais foram cometidos, disse Belkis Wille, pesquisadora da ONG Human Rights Watch no Iraque, que presenciou vários julgamentos.
Como as autoridades assumem que os réus se mudaram voluntariamente para o país com o objetivo de se unir ao EI, "há um desejo muito forte do lado iraquiano de atribuir sentenças mais severas aos estrangeiros", disse Wille à DW. "Uma coisa é você morar num vilarejo e acordar com sua cidade tomada pelo 'Estado Islâmico', outra coisa é você decidir deixar seu país para se unir ao EI."
Wille disse ainda que as autoridades não fazem exceções para mulheres: "Quando se trata de acusar mulheres estrangeiras parece haver a sensação de que, em virtude de você ter sido estrangeira em território controlado pelo EI, significa que você é culpada."
De acordo com a agência de notícias AFP, os tribunais iraquianos condenaram à morte mais de 300 pessoas, incluindo cerca de cem estrangeiros, por pertencerem ao EI, enquanto por volta de outros 300 receberam penas de prisão perpétua.
Wille disse que os juízes não demostraram nenhum interesse em investigar se as mulheres poderiam ter sido levadas à Síria e ao Iraque contra sua vontade, por maridos ou outros parentes.
  • Investigação por autoridades alemãs
Trata-se de um tema muito sensível na Alemanha: as autoridades que falaram à DW afirmaram que não querem ser vistas como interferindo no sistema judicial de um país soberano. Elas disseram que planejam deixar os julgamentos seguirem seu curso – e aplicar uma pressão cuidadosa quando sentenças de morte são proferidas.
As autoridades dizem que estão trabalhando para garantir que as pessoas condenadas cumpram suas sentenças na Alemanha, mas elas precisam agir com cautela, já que há pouco apoio público no país para o retorno de supostos membros de um grupo terrorista.
Várias mulheres e seus filhos já voltaram para a Alemanha, e é possível que haja implicações legais para eles. As autoridades alemãs já deram início a dezenas de investigações desse tipo. Até agora, a linha adotada pelos tribunais pressupõe que simplesmente ter vivido em território controlado pelo EI não é suficiente para justificar uma prisão.
Antigos amigos e conhecidos de Lamia ainda estão tentando entender por que a mulher que parecia tão normal mudou tão radicalmente. "Eu simplesmente não sei", comentou um amigo. "Como uma mulher autoconfiante pode ser radicalizada dessa forma? É simplesmente inconcebível."

DW

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